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O Homem de Ferro

  • Paulo de Lencastre
  • Jan 5
  • 16 min read

Updated: Mar 2

Mariana, que já estava doente, deixa-se morrer também. Para não ficar sozinha com o segredo. Para o continuar a partilhar com o pai adotivo, agora e para sempre, no céu. Com a morte de Mariana, a terra de São Tomé ficou apagada da família até hoje.

26 de março de 2024  

Já tarde da noite, Osvaldo Pereira, em São Paulo carrega na tecla enter. Paulo Lencastre, em Gaia, recebe o email:

– Sei por alguma pesquisa que este senhor Mateus Sampaio é seu ancestral…

– É meu trisavô. Porquê?

– Porque a minha trisavó Mariana foi perfilhada por ele.


 Mateus Sampaio (1847-1915)

“Sinto predileção pela raça negra, sem a qual nada poderíamos fazer nas regiões intertropicais”

(Cartas, Officios, Ordens de Serviço, da Companhia da Gorongoza, 1897).

 

1 de dezembro de 1914

Mateus faz hoje 67 anos. Sente-se velho, mas bem. Um sol frio de inverno banha a grande varanda voltada a sul e às vinhas da casa nova da Quinta de São Jorge, em Favaios, no Douro. São as terras da mulher fidalga do filho, os Sepúlvedas de Bragança, bem mais sonantes que os Sampaios da Sanradela, onde o pai e o filho nasceram. Recosta-se numa cadeira de lona esquecida do verão, e deixa-se enrolar na volúpia do sol aquecendo-lhe a roupa farta e o casaco comprido de inverno. A memória parte-lhe mais para sul, desce à Guiné, entra nas águas do golfo, e desembarca no Príncipe. A ilha foi a sua jangada de pedra quando há quase meio século, no princípio da vida, sentiu que a vida lhe fugia. 


Verão de 1872 (24 anos)

Mateus estava com 24 anos. Luísa, a sua mulher linda de 19 anos, com quem casara dois anos antes na flor da virgindade, acabara de morrer depois do segundo parto, junto com o filho recém-nascido a quem chamaram Francisco. Raul, o primogénito, a fazer um ano, dorme sereno nos braços da avó materna Ludovina. É terrível um médico jovem ver um filho recém-nascido morrer.  Formara-se há pouco no Porto, em medicina. A sua dissertação sobre a malária já refletia a vontade de partir do norte para o sul, para as terras verdes e férteis dos trópicos ensolarados. A malária era nessas terras o sacrifício que Deus cobrava pelo paraíso que dava aos homens. Mateus sentiu uma ordem de chamada. Deixou o filho Raul entregue ao cuidado dos avós maternos e partiu para África. 


Alistou-se como médico militar e foi nomeado delegado de saúde em São Tomé e Príncipe. A colónia estava a descobrir o ouro do cacau, depois de já ter enriquecido com o melhor café do mundo, e de ter deixado partir o açúcar menos diferenciável para as terras mais extensas e planas do Brasil. Depois de alguma aclimatação na capital São Tomé, parte para a ilha do Príncipe. Em Santo António revela-se um médico robusto para os colonos brancos e um xamã iluminado para os escravos e contratados negros. Usou o poder de médico para proteger o governador da ilha do abandono dos seus oficias numa insurreição de soldados e degredados. Quando prendeu com firmeza o sargento líder deram-lhe o nome de “homem de ferro”.


Voltou à ilha grande e à vida mais cosmopolita da capital. A saga do cacau trazia cada vez mais colonos da metrópole. As roças floresciam em redor da cidade, no norte da ilha. Era médico em algumas delas. O sul era mais montanhoso e havia o perigo dos angolares. Os angolares eram negros livres que viviam em quilombos escondidos nas montanhas interiores. Dizia-se que os primeiros foram náufragos sobreviventes de um navio negreiro vindo de Angola que encalhara há 300 anos numa das praias desertas do sul. Tinham animais e faziam agricultura, pescavam, e faziam sal nas enseadas quando desciam as ravinas das montanhas até ao mar. Atacavam se os colonos brancos os perseguissem, como bichos selvagens acossados em defesa da liberdade.


Chegaram a ter mesmo um Rei, Amador Vieira. Depois de uma matança de brancos na igreja, foi preso, decepado, enforcado e esquartejado, como símbolo dissuasor da revolta dos escravos negros da servidão dos engenhos de açúcar dos primeiros colonos brancos. São João dos Angolares era a capital desta lenda de horror no meio dos penhascos, onde os novos colonos do café e do cacau tinham medo de se instalar por causa da rudeza da terra e da ferocidade dos negros.


Quando Mateus foi destacado para São João não se assustou nem com a terra nem com as gentes. Corria o ano de 1875, a declaração de libertação dos escravos na ilha fora por fim publicada, seis anos depois da escravatura ter sido extinta no império português. A terra angolar era um dos maiores focos da turbulência que lhe seguiu. Com pulso firme e alma generosa, Mateus soube pacificar os angolares. E sentiu que o fim da escravatura, mesmo que apenas legal e simbólico, era o momento para iniciar um projeto agrícola sustentado, mais moderno e mais humano. Habituado à rudeza transmontana da sua Sanradela natal, arroteou desfiladeiros de selva, e fez a primeira roça de cacau nas terras do sul. Os angolares eram bem-vindos como contratados, sentiam-se protegidos pelo homem de ferro, que lhes dava trabalho, comida, teto, e os salvava da morte no seu hospital.


Mateus tornou-se um herói na terra dos angolares. Foi o primeiro branco a chegar ao cume do Pico de São Tomé. Era o mais alto, tinha mais de 2000 metros. Erguia-se no meio do obó, a selva fechada do coração da ilha, onde só os negros rebeldes ousavam entrar no limite da fuga, arriscando a picada mortal da cobra negra que rastejava escondida nas folhas húmidas do chão.


Há muito que era médico na Roça Rio do Ouro, a maior e mais evoluída de São Tomé. Tornara-se amigo do casal Bustamante, Gabriel e Maria Augusta. Gabriel Ploesquellec Bustamante era um brasileiro de meia idade, com um toque de velha aristocracia mineira por parte da mãe, cruzada com o cosmopolitismo europeu de um pai francês, médico cirurgião, trazido pela mulher para o Brasil. Maria Augusta da Silva era uma bonita lisboeta na flor da maturidade, quinze anos mais nova do que o marido, que encantava os homens de todas as idades em São Tomé.


Gabriel fazia parte da geração pioneira de colonos que a partir de 1850 e até 1900 fizeram de São Tomé e Príncipe o maior produtor de cacau do mundo, com 15% da produção mundial. Mateus aprendeu com ele a ser agricultor de cacau. E com Maria Augusta a pertencer por direito à alta roda mais sofisticada da ilha. Com ela criou mesmo uma cumplicidade que se transformou em amor mal ficou viúva. Nunca mais sentira amor por uma mulher desde a morte de Luísa, menina do Douro profundo. Agora era diferente. Maria Augusta era uma mulher citadina, madura, um ano mais velha do que ele, de personalidade muito forte. Em conjunto, com um quinto das terras da ilha, passaram a ser um dos maiores senhores do cacau de São Tomé. 


Atento, o Diário Ilustrado, eco político e social da “high life” instalada na capital do império, retrata Mateus em destaque na primeira página, com artigo de abertura e fotografia ao centro. Por entre o anúncio dos programas do São Carlos e do Coliseu, ou a informação das chegadas, partidas, festas, doenças e mortes dos colunáveis de Lisboa, lauda o homem de ferro, alma de oiro, o médico salvador, e o amigo dedicado, que todos conhecem em São Tomé.  


Ver jornal completo aqui.


À época, Constantino Dias, mais rude de origens, já entrara também na alta roda fechada da capital da ilha. Era um homem humilde de Murça. Chegou a São Tomé adolescente, e foi trabalhar como caixeiro num comércio da cidade. Mas depressa se emprega numa roça e começa a comprar terra também. Quando compra a Vale Flor já é um homem rico. A roça vai dar o nome à sociedade que funda e ao título de visconde que lhe é concedido pelo jovem rei D. Carlos. É eleito Presidente da Câmara de São Tomé. Casa com uma menina cabo-verdiana, uma bonita morena filha de um primo de Murça que casou em Santiago. O destino mais a sul tornou-a viscondessa e primeira dama de São Tomé.


A ascensão de Constantino é meteórica. Até demasiado rápida para os que são há mais tempo os senhores da ilha. Maria Augusta, sem filhos nem mais amarras, sente que é o momento de regressar à metrópole. A Roça Rio do Ouro que herdou do marido falecido é o troféu que agora falta a Constantino Dias. Convence Mateus a falar com ele. Constantino, mais novo do que Mateus sete anos, admirava-o. Num pacto de conterrâneos transmontanos que se entendem em poucas palavras, fecham o negócio. Constantino sentiu-se honrado por herdar do homem de ferro as suas terras e as do império Bustamante. Foi o seu imponente sucessor em São Tomé.  


Maria Augusta e Mateus Augusto deixam de mãos dadas São Tomé para sempre. 


Verão de 1891 (43 anos)

Mariana embarca com Mateus e Maria Augusta. Está com 10 anos. É filha de uma serviçal de Mateus, a sua “lavadeira” em São João dos Angolares. Teresa de Jesus era um milagre de Deus talhado em ébano. Ficou grávida de pai incógnito e Mateus perfilhou-lhe a filha. Maria Augusta aceitou bem o gesto do marido até porque Mariana nascera antes do seu casamento com Mateus. 


Antes de viajar batizaram Mariana para que ela pudesse entrar cristã na metrópole. Mateus ficou como padrinho e Maria Augusta como madrinha. Quando chegaram, Mateus vai a Lamego falar com o bispo e traz dele uma credencial para o pároco de Vilar de Maçada registar Mariana na paróquia. E assim ficou cidadã portuguesa sem reticências coloniais.


Na Sanradela, Mateus tinha casa e hábitos frugais de homem viúvo, sempre de passagem. Usava a casa térrea junto à estrada que herdou dos pais quando na metrópole sentia a nostalgia da sua terra natal. Como andava longe, tornou-a robusta ao fogo e aos ladrões. As portas foram chapeadas e fechadas com grandes chaves de ferro. Substituiu os telhados e soalhos, de telha e madeira, por pedra e ferro para não arder. Mas agora, neste seu retorno abastado de São Tomé, não servia para sede da sua nova família e da sua sofisticada mulher.  


Mariana fica a morar na Quinta de Fiães, a casa e a terra que Mateus escolheu para construir uma nova casa de família com Maria Augusta. Mateus procurava sempre o ouro da terra, e Fiães ficava na única parcela da família em Vilar de Maçada que pertencia à região demarcada do Rio Douro, a terra da promissão do vinho do Porto definida cem anos antes pelo Marquês de Pombal. Em Fiães edificou uma casa lançada ao alto, ao estilo da de São João dos Angolares, só que em terra familiar, mais segura e domesticada.


Raul, o filho de Mateus, educado pelos avós maternos entre o Douro e o Porto, já era um homem feito. Ia-se casar em Favaios, na Quinta de São Jorge, com a filha dos Viscondes de Ervedosa. Era gente da melhor tradição fidalga e militar de Trás os Montes. O bisavô de Francisca fora o grande general Jorge Sepúlveda, herói das invasões francesas em Portugal e fundador da cidade de Porto Alegre no Brasil. O tio avô Bernardo proclamara a vitória liberal do rei D. Pedro no Porto. São Jorge era a maior vinha do famoso moscatel em Favaios.


O casamento do filho com uma Sepúlveda nobilitava a família com naturalidade. Não era como os novos títulos liberais gerados com dinheiro e influencia na corte de Lisboa. Para solenizar a nova aliança dos Sepúlvedas e dos Sampaios, Mateus ofereceu ao jovem casal uma casa em São Jorge, sangue novo em simetria com o velho solar e portão de armas, onde moravam os pais de Francisca. Os netos começaram a nascer… assunto de mulheres, de mães e de avós, quando muito do pai. Mateus, o jovem avô, volta a sentir o apelo de África. 


A fama de homem de ferro era forte demais na administração colonial. E também Mateus precisava de sentir a Africa grande, e não só aquela migalha de penhascos, perdida no meio da água do golfo da Guiné, de onde fugira claustrofóbico com Maria Augusta. Talvez por trauma declinou com descrição o título de conde que lhe foi oferecido por duas vezes. E pôde escolher o seu futuro com mais autonomia. Aceitou uma concessão de 10 000 hectares no Sul da Guiné. Mais tarde foi eleito deputado às cortes por Angola.


Lado a lado no Palácio de São Bento, encontrou na mesma bancada o seu correligionário Constantino Vale Flor, eleito por São Tomé. Tinham ficado amigos na negociação das roças. Entendiam-se agora no essencial do programa conservador e monárquico do Partido Regenerador para África. Mas quando, no intervalo das sessões, discutiam cúmplices ao café o eterno problema da liberdade dos contratados em São Tomé, Mateus sentia como era diferente a perspetiva da ilha e do continente. Como devia ser diferente para um negro angolar estar prisioneiro numa ilha governada por brancos, ou poder fugir pela sua savana sem fim para se queixar aos deuses dos seus avós.


Foi um homem de ferro mais humano que aceitou o lugar de diretor delegado da Companhia da Gorongosa em Moçambique. De imediato comprou um quinto do capital para poder governar com firmeza. E encantou-se por esta terra sem fim. A Gorongosa é um espaço maior que trinta ilhas de São Tomé de mata e savana, onde os elefantes vêm pastar aos quintais e as leoas espreitam à distância de um olhar os bezerros, os cabritos e os leitões mais ingénuos que se afastem dos currais. Fez obras de conforto na sua casa de campanha para receber Maria Augusta. 


Maria Augusta era muito mais uma mulher de armas do que uma doméstica. Pegava mais depressa num revolver para fuzilar um ladrão do que numa colher de pau para provar uma sopa. E acompanhou por isso muito mais o marido em África do que a casa em Fiães. Na Gorongosa, a mais longa e mais afastada das novas sagas de Mateus, esteve quase sempre ao seu lado. Beijou-o com carinho, numa noite de terror, quando Mateus carregou duas balas no seu revolver de estimação. Se não a conseguisse salvar numa chacina anunciada de brancos, não a veria viva para ser torturada, violada e morta por negros vindos de fora, imprevisíveis, instigados pelas potencias que contestavam as fronteiras do colunato português.


Quando partia de Fiães para ir ter com Mateus, Maria Augusta entregava Mariana ao cuidado do casal de feitores da quinta. Eram da máxima confiança, ligados desde sempre à família do marido. Sentiam que Mariana tinha direito a tratamento de filha. E é assim que Mariana cresce em idade e em graça. Herdou da mãe a beleza esbelta, e do pai um sangue branco que a torna menos gentia. Entre os empregados, é a protegida dos patrões. Por isso os homens de Fiães a querem como mulher e as mães vêm com bons olhos a sua entrada na família. Maria Augusta, quando percebeu que o bem parecido filho do feitor era um dos candidatos de quem Mariana não desviava o olhar, afastou os outros do caminho, combinou com Mateus e selou o casamento. A primeira filha de Mariana vai chamar-se Maria Augusta, em homenagem à madrinha.


Quando nasce Maria Augusta em Fiães, já em São Jorge os filhos de Raul – Alda Augusta, Mateus Augusto, e Luísa – eram adolescentes. Mateus avô cada vez mais quer estar perto deles. A missão na Gorongosa era pelo menos de cinco anos. Antecipa-a quando sente que o essencial da colonização desta terra está assegurada para a Companhia e para Portugal. Deixa atrás de si roças plantadas de café e de cacau, com feitores de confiança trazidos de São Tomé. Ensaia com eles a cana de açúcar e a palma, o coqueiro e o arroz, porque há muito mais terra para ocupar. Demite-se de diretor delegado quando, depois da terra desbravada, vê que perde tempo demais a gerir intrigas de bastidor. Vende a sua parte do capital, regressa à metrópole, deixa de aceitar cargos públicos, e recolhe-se cada vez mais ao remanso da família em Fiães e em São Jorge. Vai sereno, sem querer mais mudar o mundo, às cortes a Lisboa, como deputado por Vila Real.   


 Verão de 1907 (59 anos)



Mateus olha com nostalgia o postal ilustrado que Constantino lhe mandara dias antes a dar notícias da visita do príncipe herdeiro D. Luis Filipe a São Tomé. Sua alteza real o duque de Bragança desfilara na Mateus Sampaio e na Conde de Vale Flor, as duas principais ruas do centro da cidade. E dormiu na Roça Rio do Ouro. Poderia ser ele a acolher o jovem príncipe. E a receber as honras correspondentes do rei seu pai em Lisboa. Vale Flor passa a Marquês por decreto real. Parecia o início de um novo sol doirado para Portugal na sua colónia mais próspera. Terminou lavado em sangue no regicídio em Lisboa seis meses depois.


Maria Augusta, a sua alma gémea na aventura da vida, morre em Fiães. Mateus fica de novo sozinho, deixado viúvo pelo seu segundo grande amor. Já não tem idade para novos voos para sul. Vai morar para São Jorge, para casa do filho Raul, rodeado dos netos. As meninas, Alda e Luísa, estão casadoiras. Mateus, o seu único neto homem, vai fazer 20 anos. Está na Academia Militar, é a sua eternidade, num futuro sem rei que Mateus avô já não quer viver. Em Fiães desponta uma linda menina morena, a nova Maria Augusta, filha de Mariana e António. Já é quase branca. O sangue angolar é um pingo de café perdido na memória desta nova terra, onde só corre leite e vinho generoso, cor de mel.

 

11 de outubro de 1915   

Mateus deixou-se adormecer em São Jorge, em frente à vinha, depois das vindimas. Também já estava no seu outono da vida. Morre junto ao filho, em casa da nora, como acontece quando só se têm filhos rapazes. Teve dois, morreu-lhe um, menino. Raul era o seu continuador natural. Mas não o viu crescer. E por isso tinham mais um amor de condição do que de sentidos. Falou-lhe muito pouco do seu passado distante em São Tomé. A Gorongosa, para onde foi chamado depois de Raul casar, ficou para a história da família como o apogeu, e sinal único, da sua identidade africana.


Com Mariana tinha aquela cumplicidade de pai protetor e protegido que um homem cria com uma filha mulher. Era a sua memória de São Tomé. Talvez mesmo o seu DNA que por lá brotou desconhecido. Um segredo que só os dois sabiam, depois de Maria Augusta madrinha ter morrido e de Teresa de Jesus mãe ter desaparecido para sempre, viva ou morta, sepultada num ponto minúsculo de terra onde o céu e o inferno se encontram no mar. 


Por isso no dia seguinte, quando a notícia da morte de Mateus correu os 20 quilómetros que separam São Jorge de Fiães, Mariana, que já estava doente, deixa-se morrer também. Para não ficar sozinha com o segredo. Para o continuar a partilhar com o pai adotivo, agora e para sempre, no céu. Na Sanradela, a meio do caminho, tocam os sinos pelo menino da terra que dali partiu para ver o mundo. Com a morte de Mariana, a terra de São Tomé ficou apagada da família até hoje.


Dez anos depois da morte da mãe, Maria Augusta casa com um homem também de Fiães que negociava com vinhos. Fiães entretanto tinha sido vendida por Raul.  Têm um filho ainda moreno que casa com uma menina muito loira de olhos azuis que parecia uma alemã. Vêm para o Brasil, para São Paulo, o novo eldorado dos portugueses nos anos quarenta do século vinte. Têm um filho que é o pai de Osvaldo. Osvaldo, trisneto de Mariana, é igual a Mateus.


Janeiro de 2025 

PS sonhado: Osvaldo e Paulo recebem finalmente os resultados do teste de DNA. A sua história genética cruza-se algures em frente a África, no meio do mar. Para ser preciso, na Roça de São João dos Angolares. Trocam um email de madrugada. E vão dormir. Sonham juntos com uma noite de lua cheia, em que uma bela gazela negra e um doce homem de ferro se abraçam num instante de amor tão breve que não ficou para a história. Mas Deus viu, abençoou, e registou no arquivo da vida na terra.


São Tomé, 1 de dezembro de 2024

Paulo de Lencastre, a partir de informação histórica de Osvaldo Pereira


Casa Grande da Roça de São João dos Angolares em São Tomé (fotografias de Luís Godinho).


Cronologia


1550 Naufrágio lendário de um navio negreiro vindo de Angola que encalha numa praia do sudoeste montanhoso da ilha de São Tomé. Os náufragos negros criam os primeiros quilombos angolares na floresta.

1680 Fim do ciclo dos engenhos de cana de açúcar em São Tomé, que se deslocam para o Brasil.  

1787 Introdução da cultura do café em São Tomé, vinda de Minas Gerais. 

1822 Introdução da cultura do cacau, vinda da Bahia.

C 1830 Gabriel Ploisquellec Bustamante nasce em São João del Rei, Minas Gerais, de mãe brasileira e pai médico cirurgião francês emigrado no Brasil.

1846 10 04 Maria Augusta da Silva nasce em Lisboa, na freguesia dos Anjos.

1847 12 01 Mateus Augusto Ribeiro de Sampaio nasce em Alijó, no lugar da Sanradela, freguesia de Vilar de Maçada.

1852 12 20 Luisa dos Santos Pinto Pereira nasce na Régua, no lugar de Canelas, freguesia de Poiares.

1855 03 18 José Luis Constantino Dias nasce em Murça.

1870 01 12 Mateus (22 anos) casa com Luísa (17 anos), no Porto, freguesia do Bonfim.

1871 08 25 Raul, filho de Luisa e Mateus, nasce na Sanradela.

1871 Constantino (16 anos) chega a São Tomé e emprega-se numa casa comercial.

1872 07 26 Mateus (24 anos) forma-se em medicina no Porto, com dissertação sobre a Profilaxia da Infeção Palustre.

1872? Francisco, filho de Luisa e Mateus, nasce e morre no Porto (?).  

1872? Luisa (20 anos) morre no Porto.

1872 Mateus viúvo (?) chega a São Tomé como médico militar e delegado de saúde.

1872 Maria do Carmo Dias, filha de uma cabo-verdiana e de um português primo de Constantino, nasce na Ribeira Brava, São Nicolau.

1873 Mateus (26 anos) está na ilha do Príncipe como delegado de saúde e estanca uma revolta contra o governador da ilha.   

1875 Mateus (28 anos) compra terra virgem em território angolar, no sudeste da ilha de São Tomé, e funda a Roça de São João dos Angolares.

1877 Constantino (22 anos) compra a sua primeira terra no noroeste virgem e abandonado da ilha de São Tomé.

1880 08 01 Mateus (32 anos) comanda a primeira ascensão ao Pico de São Tomé, o mais alto da ilha, com 2024 metros. 

1880 Mateus completa a ocupação pacífica do território angolar.

1881 07 Mariana, filha de Teresa de Jesus e de pai incógnito, nasce em São João dos Angolares.

1887 08 11 Mateus (39 anos) casa com Maria Augusta (41 anos) em Guadalupe, na Roça Rio do Ouro.

1987 08 26 Constantino (32 anos) recebe do rei D. Luis o título de Fidalgo da Casa Real.

1888 Mateus (41 anos) pede a exoneração de médico militar para se dedicar em exclusivo à administração das suas roças.

1890 01 01 Constantino (34 anos) é eleito e toma posse como Presidente da Câmara Municipal de São Tomé, até 1891.

1890 05 03 Constantino recebe do rei D. Carlos o título de Visconde de Vale Flor.

1890? Constantino (35 anos) casa com Maria do Carmo (18 anos) sua prima.

1891 Maria Augusta (45 anos) e Mateus (44 anos) vendem a Constantino todas as suas propriedades em São Tomé e regressam à metrópole.

1891? Mateus recupera as vinhas da Quinta de Fiães em Alijó, freguesia de Vilar de Maçada, situadas na região demarcada do Douro, e constrói uma nova casa de família para morar com Maria Augusta.  

1891 Mateus filia-se no Partido Regenerador.

1892 Mateus (45 anos) recebe uma concessão de 10 000 hectares na Guiné.

1892 08 06 Constantino recebe de D. Carlos o título de Conde de Vale Flor. 

1892 09 03 Raul casa com Francisca Sepúlveda em Alijó, na Quinta de São Jorge, freguesia de Favaios, filha de Joana Pereira e Bernardo Sepúlveda, Viscondes de Ervedosa.

1893 08 09 Alda Augusta, a primeira neta de Mateus, nasce em São Jorge.

1895 03 24 Mateus Augusto, o primeiro neto de Mateus, nasce em São Jorge.        

1896 Mateus (48 anos) é eleito deputado pelo Partido Regenerador às Cortes por Angola, até 1897.

1896 Constantino (41 anos) é eleito deputado pelo Partido Regenerador às Cortes por São Tomé e Príncipe, até 1897.

1896 07 12 Luisa, a segunda neta de Mateus, nasce em São Jorge.

1896 09 08 Mateus é nomeado diretor delegado da Companhia da Gorongosa em Moçambique, a qual se associou com um quinto do capital.

1903 Mariana (22 anos) casa com António Coelho em Alijó, na Quinta de Fiães, freguesia de Vilar de Maçada, e tem uma filha Maria Augusta.

1906 Mateus (58 anos) é eleito deputado às Cortes por Vila Real, até 1907.

1907 07 13 D. Luis Filipe, o príncipe herdeiro, visita São Tomé e pernoita na Roça Rio do Ouro.

1907 08 06 Constantino (52 anos) recebe de D. Carlos o título de Marquês de Vale Flor.

1908 02 01 D. Carlos e D. Luis Filipe são assassinados no Terreiro de Paço em Lisboa.

1915 10 10 Mateus (68 anos) morre em São Jorge e é enterrado na campa rasa do jazigo da família Sepúlveda no cemitério de Favaios.

1915 10 11 Mariana (40 anos) morre em Fiães.

1932 07 20 Constantino (77 anos) morre na Alemanha, é transladado para Portugal, e fica depositado no monumental mausoléu da família Vale Flor que mandou construir no cemitério dos Prazeres em Lisboa.



2 Comments


Guest
Jan 07

Fantástica história, que integra com doçura e garbo o Norte e o Sul português. Só uma alma grande escreve assim. Parabéns, Paulo!

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Maria Cecilia Mac Dowell
Mar 10
Replying to

Paulo,

Você captou, com uma sensibilidade impressionante o espírito da atmosfera, do tempo e da vida, dos personagens centrais: senhora de engenho e seu fiel mordono! E daqueles que gravitavam ao redor ...

Retratou mais me meio século de uma jornada, que transcorreu por três gerações, com colorido e detalhes tão reais, que eu me sentia, a cada momento descrito, tomada de uma emoção tão intensa como se, de fato, estivesse ali, vivendo aquele tempo, realmente! ...


Sra. dona Maria deixou sua marca, única e inesquecível, para sempre na memória de todos que com ela conviveram; e mais, sua personalidade e a sua vida tornaram-se uma estória, para além do horizonte doméstico, salpicada, permeada de memórias vividas por todos aquele…


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