Viagem ao Inferno
- Paulo de Lencastre
- Mar 26
- 4 min read
Updated: May 3
A raiva dá-lhe a força para abreviar o martírio. Como o pastor mata uma ovelha querida do rebanho que já ficou velha demais para viver. Depois, aliviado, carregado por Maria Madalena que é muito mais alta do que ele, deita-se na maca. Maria Madalena olha-o com ternura. E ele adormeceu.
São Paulo, Vila Mariana. Uma livraria estreita no centro do bairro. Entra-se para um café da manhã copioso. Grupos de participantes conversam.
Gabriel Arcanjo é um menino amoroso. Óculos redondos de intelectual ingénuo. Fala com quem sente que ainda não se sente acolhido. Acolhe. Mas é um participante também.
Entra-se por uma porta de duas abas gigantes de madeira até ao teto. Tem uma antecâmara para deixarmos os sapatos. Descalços, entramos numa sala escura. Ao centro três grossas velas brancas acesas escorrem a cera que as cola ao chão. No centro do triângulo formado pelas três velas está pousada uma taça que é um sacrário donde saem cristais.
As cadeiras estão à volta das velas. São vinte pessoas. Cada cadeira tem os quatro pés marcados no chão com um vértice em fita adesiva branca. Formam assim um círculo rigoroso. Uma cadeira faz de porta, uma menina abre-a para se entrar. De resto a sala está vazia, é escura, chegou a hora do julgamento final.
Todos chegaram. A cadeira que faz de porta fechou-se. Cada um fala do que o trouxe ali. Há quatro emoções para falar no círculo: o medo, a raiva, a tristeza, e a alegria. Gabriel Arcanjo perdeu a alegria. O pai morreu. A mãe casou-se com outro homem. Está triste. Com medo da solidão. Enquanto os outros falam, ele respira. Respira pela boca, é a regra. E respira profundo, é o convite. Com som a sair, se se quiser. Tudo é permitido. Só não podemos magoar os outros. Nem a nós.
Mas Gabriel uiva de dor. Ele é o arcanjo daquela chegada ao inferno em que a tristeza é a chave para entrar. Todos estão tristes. Fui abandonada pelo marido. Fui castrado pelo pai. Esqueci-me do meu nome. A minha filha quer matar-me… A mentora exacerba:
– Gabriel Arcanjo, quem tu queres matar?
A sala esvazia-se. A porta abre-se. Afinal era um purgatório. O inferno é a mesma sala transformada em enfermaria. São dez macas. Deus, que é uma mulher, escolheu os pares. Tirados à sorte com cartas. Gabriel Arcanjo ficou com uma mulher. Podia ser a mãe dele. É Maria Madalena, uma cartomante de tarot amorosa, que descobre nas cartas porque os amores são infelizes. Quer curá-los. Aprendeu com uma avó cigana. Gabriel Arcanjo estende-se na maca, a mulher poe-lhe a mão firme no peito, a aconchegar-lhe o coração.
Das outras macas veem gritos estropiados de corpos que esperneiam. Alguns não aguentam mais o silvo agudo da raiva e desfazem-se num pranto cavo de tristeza. É uma sinfonia de horror a soprar das gargantas. O sal das lágrimas salga o que a saliva possa ter de doce, e mistura-se ao suor dos corpos nus, deformados, a escorrerem pela macas.
Agora, de bruços na maca, com a cabeça encaixada num buraco, Gabriel Arcanjo leva na memória um peito grande a esborrar-se de peso, cor de rosa, com um mamilo muito negro ao meio, de uma mulher ruiva deitada, olhos rasos de água abertos para ele. Abre os olhos para evitar a cegueira. Vê ao fundo, no chão, um balde negro para onde pode cuspir. Já tem a saliva de Maria Madalena, que o precedeu na maca, e que também chorou, com os lenços brancos dela manchados e engelhados a boiar. Agora são os escarros dele que caem. Chora convulso. Maria Madalena chega-lhe um lenço limpo da caixa que está ao lado do balde. No transe, uma das ajudantes da deusa, são todas mulheres, retira o menino dos cuidados de Maria Madalena e leva-o titubeante até ao altar. Senta-o no chão, dá-lhe um tapete enrolado a servir de bordão, para ele matar a mãe transformada num saco de couro. Bate-lhe com raiva, mas sem crueldade. A raiva dá-lhe a força para abreviar o martírio. Como o pastor mata uma ovelha querida do rebanho que já ficou velha demais para viver. Depois, aliviado, carregado por Maria Madalena que é muito mais alta do que ele, deita-se na maca. Maria Madalena olha-o com ternura. E ele adormeceu.
Gabriel Arcanjo fechou os olhos e voou no tempo. Correu a vida, viajou cinquenta anos. Teve filhas e netos. Um deles, o mais velho, a filha chamou-lhe Miguel Arcanjo, para distinguir do avô. No dia do batismo escreveu um papel à filha, a quem chamara Maria do Mar, a lembrar-se que Maria Madalena, quando adormeceu, lhe acenara com a eternidade:
“Não tenhas medo do medo, é teu amigo também. Sinto que tenho de deixar viver mais as minhas emoções, descobrir que as emoções a que não gosto de dar guarida, como a raiva, ou a tristeza, também têm sentido, e mesmo que o medo pode ser nosso amigo também. A alegria é a minha luz natural, mas é prudente não ter só uma luz. A minha velhice pode ter mais pimenta… para dar mais calor aos meus mais queridos.”
No final da peça uma menina de asas brancas tirou uma fotografia. No adeus ao inferno todos estão felizes! Somos todos poetas…
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa, Autopsicografia, 1931)

São Paulo, março de 2025
Paulo de Lencastre
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