Viagem ao Paraíso
- Paulo de Lencastre
- Apr 24
- 6 min read
Updated: May 3
Boa tarde! São dez andares para reencarnar na terra, na companhia de Cali, a deusa mãe negra dos tântricos, que no seu trono, no inferno, julga a morte e a vida na eterna reencarnação da natureza. É que até no inferno pode haver céu. Eles trazem-no juntos. No sorriso. No encanto. Na sedução.
Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós também a eles (Jesus, O Sermão da Montanha).

Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”, Copacabana. Miguel Arcanjo procura no passeio intenso o número da porta, é o 33 da Avenida de Nossa Senhora. Uma porta estreita, um guarda discreto, um corredor sem luz, uma mulher madura de pele cigana ainda bonita à espera ao fundo do elevador.
Sobem até ao céu, ao último andar, o décimo. Ela sai resoluta para a direita – Bom dia! Ele tateia o número do apartamento, 1033, é para a esquerda. Não é ela!
Miguel Arcanjo é um menino curioso. Tinham-lhe falado de umas massagens especiais vindas da Índia. Ele, que é ator de filmes publicitários, sempre quis conhecer os mundos mais estranhos da vida. Quando faz um filme vai gastar logo o dinheiro numa viagem. Veio de São Paulo até ao Rio à procura de uma experiência nova de alegria:
“Meu propósito é te reconectar com o corpo, para que você encontre o potencial energético e sexual que está dentro de você. Meu processo é facilitar e guiar sua viagem profunda ao seu corpo, para descobrir novas formas de alegria, autoconfiança e realização na vida.”
Bate à porta com alguma ansiedade. A espera de segundos parece-lhe tão longa. Maria do Mar abre a porta. Sorri. Diz-lhe para tirar os sapatos. Ele leva-lhe de presente uma vela de incenso e canela, numa caixa fúcsia com uma mandala na tampa da marca para quem ele fizera o último filme. Sem falar, ela acende-a e o seu perfume mistura-se com o mantra que se ouve ao fundo.
Conversam em duas cadeiras frente a frente ao fundo da sala. Ele é um anjo, é bissexual. Ela também. Ele procura o prazer. Ela é uma fisioterapeuta especializada em assoalho pélvico e erotismo místico. Ele tem um problema, nasceu hermafrodita, fez uma cirurgia, e os pais a conselho dos médicos optaram pelo sexo masculino. Mas sente-se também mulher. O pai morreu, a mãe partiu com outro homem, e nunca mais a viu. Adora os filmes do Almodôvar desde que a sua avó, desesperada, o levou a ver “Tudo Sobre a Minha Mãe” quando fez quinze anos, num esforço de terapia de género que ele ainda não incorporou. Pode entrar no paraíso?
A regra de ouro é a roda do consentimento (1). Fora dela é o inferno do violador e da vítima, do egoísta e do subserviente. Dentro dela é o saber dar e o saber receber, o saber agir e o saber permitir. É a roda onde tudo é possível, tudo é presente, tudo é prazer, tudo é aconchego de comunhão. Ama e faz tudo o que quiseres.
Ele despe-se, amontoa a roupa num canto escuro da sala, e estende o corpo branco, esgalgado, no tapete negro que está no chão. A sala está só iluminada com a vela e o fumo a subir. Ela troca a jardineira de ganga azul de menina por um fato de anjo negro colado ao corpo que lhe contrasta os cabelos ruivos. Sobrevoa-o. As suas mãos tocam-no suaves. São dedos finos, com unhas pintadas de verniz castanho cinza, que lhe percorrem o corpo.
Ele deixa os olhos semicerrados. Vê-a debruçada sobre ele. Ela diz-lhe que inspire fundo. Pela boca, pela vida. E suspire com libertação. Que sinta o prazer suave do toque dos seus dedos na pele. Que descubra o prazer que tem dentro do corpo. Que dance deitado ao som cavo do ar que lhe sai da garganta. As mãos às vezes encontram-se, apertam-se, e depois desprendem-se. E os braços entrelaçam-se – Se quiseres podes me abraçar. E depois senta-se. Entrelaça as pernas nas dele. Encharca-o em óleo de coco, aquece as mãos em concha na vela acesa, e começa a massajá-lo com movimentos firmes. Vem cá abaixo, ao fundo do corpo, depois sobe, espalma-lhe a mão no peito. E suspira. – Segue-me a respirar. A mão dela é firme. Não deixa lugar a dúvidas. Depois para. Enrola os dedos nos cabelos dele enquanto lhe aperta o crânio. E regressa… Olham-se nos olhos, fixos, em tatraka (2)... e o corpo dele entrega-se suave num espasmo sem receio.
Miguel Arcanjo chora, como o seu avô chorou em São Paulo há setenta anos atrás. Mas agora não sente nem medo, nem raiva, nem tristeza. Chora porquê? Estão no Rio, a cidade é maravilhosa. Conversam. Sobre as correntes do tantra no ocidente. Há uma corrente inicial que recomenda a contenção. De olhos fechados, vendados, o paciente sente despertar a sua a energia interior numa relação intensa de toque e respiração com o terapeuta. Mas a relação é casta de olhares, de sons, de movimentos, despertadores perigosos de uma relação erótica. Na roda do consentimento é o percurso do terapeuta ator ativo e do paciente recebedor passivo.
Mas nenhum homem é uma ilha, egoísta, que se contenta em receber. O paciente pode ser um recebedor ativo e o terapeuta um ator permissor. No consentimento mútuo, corpos e almas podem enrolar-se, presentear-se, num erotismo de oração a deus pela natureza em que nos fez nascer. É a doutrina dos Vedas lida na Califórnia por uma sueca vidente da fusão universal. Que transforma raiva em amor, medo em doação, tristeza em alegria. Como propunha o velho Swami de Kajuraho a explicar o tantra. Ou Jesus no Sermão da Montanha a mostrar-nos o céu.
Por quem os sinos dobram? Miguel Arcanjo sentiu nessa tarde, na penumbra do quarto, na primeira lágrima que lhe escorreu a face, no corpo em postura de cadáver amortalhado num lençol branco em cima do tapete, quando ouviu ao longe os sinos da igreja de Nossa Senhora de Copacabana tocarem para a missa vespertina que, para além da morte, o amor era o outro remédio que o podia curar.
A sessão de massagem tântrica terminara. Como se chama? – Maria do Mar. – Era assim que se chamava a minha Mãe.
Quando Miguel Arcanjo saiu, a cigana estava à espera do elevador. Cumprimentam-se com um sorriso. – Boa tarde! São dez andares para reencarnar na terra, na companhia de Cali, a deusa mãe negra dos tântricos, que no seu trono, no inferno, julga a morte e a vida na eterna reencarnação da natureza. É que até no inferno pode haver céu. Eles trazem-no juntos. No sorriso. No encanto. Na sedução. Como se chama? – Carla do Parque, mas na verdade nasci Maria Madalena. Volta com ela para São Paulo. Saem na Estação da Luz onde ela trabalha. Dormem exaustos na mesma cama. No final, quando ela percebe que a avó dele morreu e que ele não sabe onde está a mãe, leva-o para casa e adota-o, como filho, para o curar da solidão.

Nenhum homem é uma ilha,
Inteira só por si.
Cada homem é um pedaço de continente,
Uma parte do todo.
Se um torrão de terra for levado pelo mar,
A Europa fica diminuída,
Como ficaria um promontório,
Como ficaria a terra de um teu amigo,
Ou a tua própria terra.
A morte de qualquer homem me diminui,
Porque sou parte do gênero humano.
Por isso não me mandes saber
Por quem os sinos dobram,
Eles dobram por ti.
(John Donne, Meditação XVII, 1624, in Ernest Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram, 1940)
Notas do autor:
(1) Betty Martin, The Art of Receiving and Giving: The Wheel of Consent, 2021. A “roda do consentimento” é um modelo proposto pela sexóloga Betty Martin, sueca radicada na Califórnia, que define quatro grandes polos de relação entre as pessoas: o dar e o receber, o agir e o permitir. Estes quatro polos têm quatro perfis de sombra: o subserviente e o egoísta, o violador e a vítima. O consentimento é a linha que separa o inferno do paraíso.

(2) “tatraka”, palavra sânscrita que significa olhar com lágrimas, é uma prática de yoga que consiste em fixar o olhar, sem piscar, num ponto, num objeto, numa vela, no olhar de outra pessoa, até às lágrimas.
São Paulo, abril de 2025
Paulo de Lencastre
Comentarios