Viagem na Amazónia
- Paulo de Lencastre
- Dec 7, 2024
- 17 min read
Updated: Apr 20
Não caçámos o catitú, mas vivemos todas as dúvidas de um branco civilizado diante da sabedoria de um índio no coração da floresta. Estamos completamente dependentes do madihan que nos guia. Banú “amouni”, companheiro, é o nosso líder.
Janeiro de 2004
Sexta feira, dia 16 de janeiro
A viagem

A vermelho - a localização da tribo Deni na Amazónia.
Saímos de Porto Velho às 6h da manhã. Somos dois homens e uma mulher. O hidroavião está à nossa espera no rio Madeira, comandado pelo Mike, um americano filho de alemã e de indiano. É uma viagem de 700 km, duas horas e meia de voo até chegar a uma das aldeias da tribo Deni. São 800 índios, da linhagem linguística Arawa, que une várias tribos sedentarizadas entre os rios Juruá e Purus, vindos do Sul, afluentes do Amazonas no trecho antes do rio Negro, que se chama Solimões (1).
A viagem é feita num oceano verde. Só uma vez vimos um sinal de vida humana. Voávamos há mais de uma hora. Já tínhamos atravessado a fronteira do grande veio de água do Purus. O Mike aponta-nos para um caracol circular de folhagem seca que contrasta com verde vivo das copas das árvores. Vê-se agora outro mais ao longe. São as casas dos Zuruaha, uma tribo da mesma linhagem linguística dos Deni, mas muito mais pequena e isolada. O Mike explica que a FUNAI, a Fundação Nacional do Índio, para proteger o modo de vida isolado dos Zuruaha, não deixa construir uma pista de aterragem para chegar à tribo. Para lá chegar aterra-se no braço de rio mais perto e fazem-se 12h horas de piroga. São casas altas de teto cónico, suspenso em estacas, sem paredes. Em cada casa vive uma família alargada que pode ter mais de 50 índios. Vivem quase nus, misturados com os animais que domesticam, todos debaixo do mesmo teto. Têm um alto registo de suicídios porque acreditam que a coragem de morrer antes da velhice chegar lhes traz a eterna juventude na morada dos deuses. Envenenam-se na floresta mastigando timbó, a planta sagrada que também usam para pescar, intoxicando os peixes, e vêm morrer à casa comum, subindo ao céu.
A viagem continua numa monotonia de céu azul e verde da mata. Até que vemos o primeiro grande contraste. O Mike chama a atenção para uma clareira verde mais clara, salpicada de pequenas construções retangulares de madeira, e de minúsculas silhuetas movendo-se no fundo verde. Próximo corre um rio.
É no rio que o Mike prepara a aterragem. O avião pousa na água, transforma-se em barco e aproxima-nos de uma volta do rio. Na margem muitos índios, homens, mulheres e crianças, aguardam-nos.

Entrada na reserva Deni.
A chegada
Descemos da nossa cabine para uma piroga que se encosta a uma das boias do hidroavião. O Mike retira as nossas mochilas do interior da boia e entrega-nos ao Elton, que com um índio nos estendem os braços para nos ajudar a embarcar. O Mike regressa à cabine, liga o motor e levanta voo de volta para Porto Velho.
Chegamos à margem. O Elton é o nosso anfitrião brasileiro na tribo. É um pastor evangélico do Recife que está de missionário há onze anos nos Deni. É o único com quem falamos. De resto são esboços de gestos e de sorrisos de descoberta. Sentimos o fofo húmido da folhagem nos pés descalços. Penduramos as havaianas nas mochilas para não nos atrapalharem a marcha. Pomos as mochilas às costas e entramos na floresta.
A trilha que seguimos só existe porque um guia índio vai à frente. Os nossos pés tanto pisam terra firme como se afundam em água e lama. A luz do dia entra coada por entre uma densa teia de ramos, cipós e folhagem. Caminhamos meia hora neste claustro vegetal, até que ao fundo chegamos à clareira que vimos do avião. Agora estende-se à nossa frente, é um amplo relvado para onde se voltam as casas da aldeia.

As casas dos Deni.
Para podermos entrar no território Deni é preciso a autorização do cacique e do pagé. Tivemo-la porque o missionário Elton intercedeu por nós. A presença do missionário na aldeia só é possível porque o cacique e o pagé estão de acordo e o disseram à FUNAI, Fundação Nacional do Índio. O Elton também é enfermeiro e é ele que assegura o funcionamento do pequeno centro de saúde instalado na aldeia pela FUNASA, a Fundação Nacional de Saúde.
Em aldeias mais próximas da “civilização”, a FUNAI coloca por regra um seu funcionário residente que assegura os serviços de saúde. Nos casos mais longínquos, como os Deni, a FUNAI não consegue manter funcionários e a FUNASA não consegue assegurar a assistência médica. Daí a presença do Elton. Como outros missionários evangélicos, ele tem como missão evangelizar os índios. Conta com o apoio da igreja que representa, tanto do Brasil como no exterior, neste caso dos Estados Unidos. O centro da missão está sediado em Porto Velho, num campus onde linguistas e suas famílias, americanos na maioria, vivem. O objetivo é traduzir a Bíblia para as línguas indígenas. Cada língua é exclusiva de uma tribo, e pode não ter nenhuma relação com a língua das tribos vizinhas. O Elton já aprendeu a falar a língua Deni com fluência, mas ainda está longe de ter transmitido aos linguistas da missão toda a informação necessária para a sua codificação escrita. Não há nenhum índio evangelizado, apesar do Elton morar na aldeia há mais de dez anos.
A ação do Elton não colide com a missão do pagé porque os dois homens criaram um pacto tácito. Quando um índio está doente, consulta primeiro o pagé, que o manda ao missionário para receber os remédios. O doente regressa então ao pagé para receber o tratamento espiritual. Para os Deni a doença é estar-se possuído por algum mau espírito.
A Ivone é enfermeira num grande hospital público do Recife e fiel da comunidade evangélica que suporta o Elton. Quando chegamos, logo correu a notícia da sua competência médica. Antes mesmo de se instalar, foi assediada para ir ao dispensário tratar de um jovem índio ferido na caça que tinha o dedo anelar inchado de pus e já quase não conseguia fechar mão direita. Precisava de uma incisão profunda, difícil demais para o Elton, que não tem formação médica profissional. O Elton preparou tudo. Uma faca de mato, desinfetada com álcool do dispensário, fez de bisturi. O dedo depois de lancetado desinchou, as dores diminuíram, e a mão voltou a articular-se.
Durante a nossa estadia, a Ivone passou a ser reclamada para tudo o que tinha a ver com saúde. O Elton levava-a sempre. Foi assistir ao parto da segunda mulher do pagé. Esta forma natural de sincretismo curativo não afeta a imagem do pagé, que se mantém a referência última para curar as doenças do corpo e do espírito. É um bom entendimento em que os dois ganham. E é assim que o Elton se mantém na aldeia. Com o tempo e a confiança instalada, foi-se tornando um terceiro poder, mas sempre atento a não ultrapassar as fronteiras simbólicas de autoridade do cacique e do pagé.
Na sua subtil missão de evangelização Elton não está só. De vez em quando tem a mulher que, com um casal de filhos crianças, o vem visitar. E desde há pouco tem dois missionários jovens que o ajudam. Veio primeiro um para o levantamento linguístico. O outro, recém-chegado, tem formação em agronomia, e ensaia na tribo alguma agricultura adaptada à floresta.
Como é que se é cacique ou pagé? O pagé tem um poder hereditário, guarda e transmite ao seu filho mais velho os segredos de curar e de falar com os deuses. O cacique é eleito, impõe-se por ser um bom caçador e um bom pescador, por ser líder, organizar festas e ter boa comida para oferecer aos convidados. Não tem riqueza permanente, ninguém tem nos Deni. Quando envelhece e as suas capacidades diminuem, o cacique é ajudado pelos genros. É o representante político da tribo junto da FUNAI.
As casas da aldeia
Por comparação com os Zuruaha que sobrevoamos de manhã, os Deni são mais próximos de nós. Vivem em casas retangulares de madeira, que constam de um estrado suspenso a 1,70 m de altura, suportado por estacas, coberto por um telhado de duas águas feito de folhagem entrançada. Não têm paredes. Num dos cantos arde a fogueira, feita sobre terra, que evita que o estrado, uma esteira de madeira fina e flexível, se incendeie.

Fogueira sobre terra e rede.
Das traves do teto pendem redes onde as mulheres se recostam durante o dia. À noite têm os seus homens ao lado, vindos da caça ou da pesca, numa intimidade que se restringe aos panos vindos do teto que descem sobre as redes, servindo ao mesmo tempo de mosquiteiros e de cortinas.

Habitação familiar.
A casa da missão, onde vive o Elton, é suspensa como a dos índios. É uma segurança ancestral contra os animais rastejantes do solo. De resto, é uma casa normal de madeira, com paredes exteriores, e interiores criando divisórias. Uma abertura à volta de toda a casa funciona como janela contínua, protegida com uma rede de malha fina para evitar a entrada dos mosquitos.
À noite, antes de dormir, saí da casa para fumar um cigarro, ritual de fim de dia. O Elton pedira-me para fumar escondido, não acender o cigarro em terreno aberto para que os índios não vissem a chama do fósforo e a brasa a arder. Queria evitar que eles viessem a adotar este mau vício. Já tinham o rapé. Por isso eu trazia o cigarro aceso de casa, envolto na mão, deixando apenas que o fumo subindo na noite denunciasse ao céu o meu pecado.
Depois fui-me deitar. Da minha cama, um beliche suspenso no ar ao nível da janela, entrevi na noite a formidável tempestade da floresta. Clarões de raios iluminam o céu, os trovões estremecem a terra, e a chuva cai em bátegas, libertando a atmosfera de mais um dia de floresta húmida a respirar.
Sábado, dia 17 de janeiro
A festa
Hoje espera-nos uma visita à outra aldeia da tribo, chamada Viagem, provável tradução do nome índio para português. Viagem fica a meia hora de caminhada até ao igarapé e mais duas horas de piroga pelo rio Cuniuá acima. A aldeia fica mesmo na margem do rio.

Chegada à aldeia de Viagem.

A casa do cacique de Viagem em preparação para a festa.
O cacique de Viagem é um índio de meia idade que nos recebe em sua casa, maior do que as outras, chamando toda a aldeia. A receção foi lauta. Primeiro serve o “purú”, farinha de mandioca molhada, posta no centro da esteira. Os convidados de honra, que somos nós, servem-se primeiro. Depois todos os outros. Pegam nas mãos a sua dose com sofreguidão. Para beber temos açaí e “patauá” que parece um leite vegetal com cacau. Entretanto, as mulheres preparam a “pupunha”, fruto silvestre pequeno que é uma das bases da alimentação dos índios. Vem ainda arroz comprado ao branco. Vem pato, anta e cutia. A anta é um mamífero grande e pesado de carne vermelha parecida com a vaca. A cutia é um mamífero pequeno com carne parecida com a do porco. Entretanto anunciam uma comida especial, paca, um mamífero parecido com a lontra, que é uma das carnes mais apreciadas pelos índios. É aveludada como o nosso leitão, e só se come em dias de festa. Na cozinha, quer dizer, na outra extrema da esteira, sai das brasas a mão ardida do corpo de um macaco prego, o outro grande manjar carnívoro da culinária Deni. No final, o cacique vem ao meio da sala e serve a melancia. Corta com solenidade em fatias os frutos enormes, sempre primeiro para os convidados e depois para os outros. O cacique não come, apenas oferece. No ritual da festa Deni, o anfitrião não se junta aos convidados no banquete, observa com satisfação a comida farta que proporciona.
A vida
Os Deni são caçadores e recolectores. A agricultura é incipiente e assegurada pelas mulheres. Uma pequena roça, numa clareira da floresta retirada da aldeia, está coberta de mandioca. É lá que o jovem agrónomo ajudante do missionário procura ser para as plantas o que o Elton é para os homens. Trata as doenças e ensaia novas culturas como a banana, o ananás e a batata doce.

Pequena plantação na floresta.

Forno de preparação da farinha de “purú”.
A importância social de uma família Deni está muito ligada à sua capacidade de dar festas. Que depende muito mais da qualidade dos seus homens como caçadores e pescadores do que de qualquer riqueza acumulada. A noção de propriedade privada quase não existe. Não usam nem o sal nem o açúcar para conservar os alimentos. Por isso o produto da caça e da pesca não se guarda, é partilhado pelas mulheres sempre que os homens chegam. A casa não é perene, destrói-se e constrói-se noutro lugar quando alguém morre. Uma família tem tantas redes ou tantas colheres quantos os seus membros, não há nada para roubar. Talvez só os maridos e as mulheres. A palavra roubo não existe na língua Deni. Em contrapartida têm um conjunto variado de palavras para expressar as diferentes formas de subir o rio.
É um povo de sexualidade promíscua e as leis da tribo prevêem-na com naturalidade. As meninas a partir dos 7 anos já podem ser “tocadas”, e aos 12 anos já casam, muitas vezes grávidas. O casamento ideal é o casamento cruzado preparado em família. O rapaz, um pouco mais velho, vai dormir à experiência para casa dos futuros sogros, ela que é sua tia, irmã do pai, ou ele que é seu tio, irmão da mãe. É um casamento cruzado. A rede do primo indigitado é colocada ao lado da rede da prima prometida. Se ela não gostar dele, no dia seguinte tira a rede e manda o primo embora. Se gostar, o primo fica à experiência por três luas. Se ela entretanto ficar grávida, é sinal antecipado de que querem casar. O filho de uma irmã da mãe ou de um irmão do pai, não pode ser escolhido, porque pode ser irmão, fruto de amores clandestinos entre cunhados. É a interdição dos casamentos paralelos. Os casamentos entre primos gera clãs familiares fortes de entreajuda. A interdição dos casamentos paralelos é a salvaguarda necessária para impedir que relações furtuitas entre cunhados gerem incestos na geração seguinte.

Meninas Deni. A menina da esquerda tem 12 anos e está grávida.
Ter filhas é ter riqueza, porque os genros ficam obrigados a trabalhar para os sogros, construindo a casa e trazendo a comida. O casamento é por tradição monogâmico, mas as infidelidades conjugais são muitas. Os Deni têm um conceito diluído de crime e castigo. Um dos crimes mais evidentes é quando ferem um companheiro, mesmo que sem querer, na caça. O castigo é ter de beber um caldeirão de água com pimenta e vomitar tudo. Quando um índio é infiel no casamento, o marido ou a mulher enganado vinga-se sendo infiel também. Isto gera cadeias de infidelidade sucessivas, que se auto-gerem sem violência, apenas pelo diz-se diz-se social.
Os Deni não são violentos, embora possam ter comportamentos muito cruéis para o nosso olhar. Uma criança não desejada é morta pela própria mãe quando nasce, sentando-se em cima dela e quebrando-lhe a cervical. É o que por regra acontece ao segundo irmão de um par de gémeos.

Uma mãe com um par de gémeos, situação rara entre os Deni.
Uma criança defeituosa deve ser enterrada viva, para que o mau espírito que a possui saia dela debaixo da terra. O Elton contou que um dia, já de noite, um pai chegou à casa da missão. Tinha-lhe nascido mais um filho, um rapaz. Mas estava triste porque o bebé era defeituoso, tinha o lábio superior e o palato bifurcados, uma má formação genética causada pelas uniões consanguíneas. O Elton tinha chegado à tribo há pouco tempo, e acreditou que pela primeira vez pudesse mudar a tradição. Falou à FUNASA e propôs-se salvá-lo. Levou-o para ser operado na “cidade grande”, São Paulo, onde a FUNASA tem um hospital vocacionado para o tratamento das doenças nas populações indígenas. O pagé impôs na tribo o benefício da dúvida, contra os mais velhos que não aceitavam que se brincasse assim com as leis da vida e da morte. O bebé, com duas viagens e duas cirurgias, ficou bom. Hoje o Elton sabe que para salvar da morte um bebé defeituoso tem de poder curá-lo.
Domingo, dia 18 de janeiro
O mundo exterior
Na aldeia há dois “madihan” (índios) que já viveram no mundo dos “carivás” (brancos). Um foi levado por um missionário branco americano a percorrer o Brasil das cidades grandes. Viu muito em pouco tempo, era um adolescente. Voltou à aldeia há muitas luas para não sair mais. O outro é o Banú, que nos contou esta história, e muitas outras. É nosso amigo desde que chegámos. Trabalhou com um branco rico em Manaus durante seis anos. Ficou a falar português, conhece o valor do dinheiro, e sabe ver as horas num relógio que mostra com orgulho. Explica que doze luas dos índios são dez meses dos brancos e que os invernos dos índios são os anos dos brancos.
Apesar da ideia de roubo, e a palavra correspondente, estarem ausentes da língua, não significa que os Deni desprezem a posse de objetos raros, como colares e pulseiras de missangas, canivetes e canetas trazidos pelos brancos. Existe uma clara ideia de comércio quando um branco chega à aldeia. O estrangeiro é presenteado com colares e pulseiras de sementes da mata, arcos e flechas decorados com penas, e os índios esperam receber em troca os presentes dos brancos. Quando regressámos à nossa cidade do Recife, enviámos pela igreja presentes àqueles que nos tinham presenteado. É um gesto de gratidão que também nos assegura um boa receção futura na tribo quando quisermos voltar.
O Banú levou-nos hoje ao nascer do sol pela selva adentro para caçar. Vamos atrás de um “catitú”, que é um porco selvagem pequeno, com dentes grandes e carne tenra. Tinha sido visto ontem por um índio jovem que nos acompanha. Depois de uma longa marcha pela mata fechada chegamos a uma clareira com um tronco negro de árvore caída no meio, oco. O Banú e o ajudante bateram concertados de um lado e do outro do tronco. Ecoava como um tambor. Mas o catitú, que estaria lá dentro, ou já fugiu, ou percebeu que era melhor ficar imóvel sem arriscar a saída, porque não ia ser acossado como em dia de caça a sério. Hoje só queriam mostrar os segredos da mata aos novos amigos carivás.

Banú e os seus dois filhos.
Andamos a manhã inteira. O Banú ensina-nos a almofadar os pés descalços nos troncos mortos para atravessar os rios. O jovem ajudante segue à frente, cortando com um machado os ramos e cipós que nos atravessam o caminho. O Banú empunha a espingarda quando um barulho furtivo de bicho do mato lhe chama a atenção. Se decide mudar de rumo numa direção que não conhece, passa à frente e marca o caminho com um lanho leve de faca em algumas árvores para sabermos voltar.
Não caçámos o catitú, mas vivemos todas as dúvidas de um branco civilizado diante da sabedoria de um índio no coração da floresta. Estamos completamente dependentes do madihan que nos guia. Banú “amouni”, companheiro, é o nosso líder.
Segunda feira, dia 19 de janeiro
Ontem foi dia de caça, hoje é dia de pesca. O Banú já se sente muito à vontade connosco. Já anuncia “onça” em brincadeira, a sair da mata e a atravessar o rio de águas calmas onde nos passeamos numa piroga. Depois de rir com o nosso sobressalto, explica que era uma ariranha, uma espécie de cachorro de água que, à distância, para o olhar ingénuo de um branco ou mesmo de um jovem índio, pode parecer a temível onça negra. O Banú, agora a sério, conta que já matou duas onças, uma grande, a onça pintada, e outra mais pequena, a onça vermelha. Todas comem “homem” quando acossadas e são os animais mais perigosos da floresta.
Mas hoje é o dia do Banú nos ensinar a pescar. A piroga já deslizava há um bom tempo no meio do rio. Num momento, sem contar, desviamos para a margem. Entramos lentamente, com gestos de silêncio, numa enseada alagada da mata, misturados na folhagem. É um “igapó” que conhecem bem, um lugar de águas baixas e paradas onde os peixes mais pequenos podem, tranquilos, vir comer. O ajudante do Banú hoje é um sobrinho, bom como ele na pesca ágil com fio e anzol. Algum tempo em cada lugar, com meia dúzia de peixes pescados, e logo o Banú manda mudar. Envolvendo a nossa mão, põe-nos a nós, os dois homens, a pescar também. A Ivone só assiste.
Foi um dia bom de peixe. Na volta o Banú explica que vai entregar o peixe à mulher, que depois o distribui pelas mulheres da aldeia que lhe vêm pedir. O Banú só tem uma mulher. Na aldeia o cacique e o pagé são os únicos que têm duas. O pagé é filho de pagé e o seu filho será pagé também. O Banú não quer ser cacique, contenta-se com o lugar de “presidente da associação”, que ele não sabe bem o que é nem para que serve, mas que tem vice-presidente e tesoureiro. As associações de aldeia indígena são uma iniciativa nova da FUNAI para organizar o apoio aos índios. Na verdade, o Banú foi eleito porque é o que fala melhor português na aldeia. Um destino político promissor poderá levá-lo a Manaus, quem sabe a Brasília ou a São Paulo, para representar a aldeia, receber donativos, e pedir a subida do preço do óleo de copaíba.
A copaíba é uma árvore da floresta que os índios sangram para tirar a resina. É um óleo amarelo transparente com propriedades medicinais. A indústria farmacêutica usa-o como anti-inflamatório, e na cosmética é bom para beleza da pele. Os índios guardam-no em garrafas de plástico de litro e meio que lhes são deixadas vazias por comerciantes brancos que chegam ao rio. Na vinda seguinte trocam as garrafas cheias por sacos de feijão, arroz, ou biscoitos que estimulam os índios a comer. Os sacos trazem os preços da cidade. As garrafas são avaliadas a 4 reais cada (cerca de 2 euros). Quando chegam à cidade já valem 10 reais. É por isso que a FUNAI quer intervir no preço do óleo pago aos índios.
Como presidente da associação, o Banú assegura o “funcionamento” de um pequeno armazém onde guarda os víveres que troca com os comerciantes brancos, e onde os índios da aldeia, quando os querem, se vêm abastecer. O Banú abriu-nos o armazém para mostrar as prateleiras cheias de embalagens. Pegamos em algumas com a curiosidade de quem encontra coisas familiares no outro mundo. Muitas estavam fora de prazo. Culpa dos comerciantes que enganam o Banú? Ou do Banú que não prevê a procura? Se é que ela existe? Parece óbvio que os índios da aldeia não estão interessados em adotar por sistema a comida embalada dos brancos. Para que continua então a troca? Talvez só porque existe o Banú, e a FUNAI, e os comerciantes. É um ritual de encontro com o mundo exterior, que só o Banú conheceu bem, é o seu território de poder na tribo.
Na altura o Banú não perdeu tempo a perceber a incongruência. Agora dá-nos a resposta. Com uma ignorância sábia, não pensa no futuro. Só está preocupado em levar o peixe que alimentará a sua tribo hoje. Ainda sentado na piroga, com o mesmo olhar sonhador que num sofá de Manaus vira um homem branco puxar dum charuto, o Banú destapa um tubo com um pó castanho que amontoa na palma da mão. Mastiga-o, medita, e engole-o. Depois dá-nos a provar. É um pó apimentado que se saliva, feito de tabaco e cacau silvestre, com um efeito estimulante que nos aviva os sentidos.
Hoje à tarde há futebol. Todas as tardes os homens mais jovens reúnem-se na praça da aldeia para jogar. Marcaram com estacas os limites do campo e fizeram as balizas com troncos da floresta. Foi o Elton que os ensinou. É apaixonado e joga bem. Instalou na casa dele um painel solar que alimenta a televisão duas a três horas por dia. Os índios reúnem-se lá para ver os jogos. Conhecem Ronaldo o fenômeno e Ronaldinho o gaúcho, que são morenos como o Elton. Viram-nos ganhar aos homens brancos e altos da Alemanha na final Copa do Mundo. Por isso no campo o Elton é o líder. Pôs os dois novos carivás, que não se sabe como jogam, um em cada equipa. Com o nosso 1,70 m somos uns gigantes. Os índios são todos muito mais baixos que nós. Mas são muito mais velozes. Quando recebemos a bola, se não a passamos logo, perdemo-la no mesmo instante, tirada por um pequeno furacão entroncado que nos passa a queimar o corpo à altura do peito. Só mesmo num canto, de cabeça, em frente à baliza, consegui marcar um golo de glória na terra dos Deni.
Terça feira, dia 20 de janeiro
A partida
Deixamos a aldeia de manhã com nostalgia. O Mike vem buscar-nos ao rio. Ivone, a deusa morena que sabe cuidar das doenças, teve de prometer que voltava. As mulheres trazem-lhe os filhos para uma última bênção. Nós dois, os novos carivás, deixamos amigos. O jogo de futebol de ontem foi o nosso batismo na tribo. Companheiros mais cúmplices nos passes vêm despedir-se. Deixamos-lhes todas as nossas camisas. Em troca dão-nos arcos e flechas. Descemos a ladeira, com o Elton e o Banú à frente, e uma procissão atrás de nós. Afastamo-nos na piroga em direção ao avião. As mãos acenam-nos na margem do igarapé. Sabemos que seremos bem-vindos quando voltarmos.
Porto Velho, janeiro de 2004
Paulo de Lencastre
Novembro de 2024
Nunca mais voltamos… e a vida não nos vai mais deixar voltar. Hoje, que releio estas notas, 20 anos passados, nem acredito que foram só 4 dias. Na memória ocupam o espaço de uma longa estadia. Por isso a terra dos Deni ainda hoje é uma terra nossa, onde moramos, onde vivemos, onde dormimos, onde sonhamos, e onde deixamos amigos. O Elton e o Banú são nossos amigos para sempre. E a Ivone, o Eduardo, e eu, por muito que a vida nos separe, voamos sempre juntos quando a memória nos leva à terra Deni.
Nota do autor:
(1) O povo Deni distribui-se por 8 aldeias, 4 no rio Cuniuá (398 índios) e 4 no rio Xeruam (400 índios). As 4 aldeias do rio Cuniuá são Cidadezinha, Marrecão (onde ficamos), Viagem (que visitamos) e Samaúma. As 4 aldeias do rio Xeruam são Rezemam, Morada Nova, Boiador e Itaúba. A cidade mais próxima é Panini. Tudo isto se passa no município de Tapauá, no interior do estado do Amazonas, no norte do Brasil. A reserva Deni tem 1 530 000 hectares (um sexto da área de Portugal ou do estado de Pernambuco). O que significa que cada índio Deni dispõe de quase 2 000 ha de terra para seu uso exclusivo. A terra pertence ao Estado Federal, mas está cedida à tribo a título definitivo. Só entra na reserva quem seja autorizado pela tribo. Só eles podem caçar, pescar e cortar madeira na reserva, mas não podem vender.
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