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Viagem ao Tantra

  • Paulo de Lencastre
  • Feb 18, 2024
  • 8 min read

Updated: May 3

As suas figuras, mulheres, homens, bichos e deuses, entrelaçados, sorrindo, elevando-se em pirâmide ao céu, são um hino à eterna criação. Nada se perde, tudo se transforma. Hoje são um símbolo do tantra.

Khajuraho, março de 2023


A menina pergunta ao velho sábio: – Swami, o que é o tantra?


O homem olha para o infinito e começa a dizer. O tantra somos nós. São as aves e os peixes, a mulher e o homem, o sol e a lua. Há três olhares no universo: o yantra, o mantra e o tantra. O yantra é como somos feitos, os nossos olhos, os nossos ouvidos, a nossa boca. O mantra são os nossos sentidos, que nos permitem relacionar com o outro, é a nossa dualidade, o feminino e o masculino, o olhar, o ouvir, o tocar. O tantra é a síntese, é quando a dualidade se une, quando o amor cruza a diferença e alimenta a vida.


Não há duas flores iguais. Não há dois seres iguais. Não há duas impressões digitais iguais. Todos nós somos únicos. Mas também toda a natureza – as pedras, os rios, as árvores, os bichos, todos nós – somos um conjunto de átomos. Todo o átomo é composto de eletrões, protões e neutrões. O eletrão é a energia necessária à vida. O protão é o seu recetáculo. O neutrão é a síntese, é a explosão criadora do eterno renascer. Quando os grandes físicos da terra se reuniram há dez anos na Suíça para assistir a uma explosão de neutrões, viram que há sempre uma parcela não divisível. Essa parcela é deus. Deus está na poeira da terra e nos astros das galáxias.  


Swami Ganga – sábio do Ganges, o rio sagrado – tem um ashram em Khajuraho. Chama-se Hotel Harmonia. Abriga quem vem à procura de um grande enigma da Índia antiga, os templos da arte erótica de Khajuraho. Têm mil anos. A história turística é simples. Dantes a Índia era uma cultura liberta, mulheres e homens não escondiam os corpos, o amor era expressivo, alegre, erótico. Tudo isto desapareceu com as invasões muçulmanas. Do vizinho Afeganistão hordas de conquistadores no século XII fizeram desaparecer para sempre esta cultura. A bela Índia, violada, nunca mais foi igual, mesmo depois de liberta. Os templos de Khajuraho ficaram submersos durante séculos pela densa floresta tropical. E, quando no seculo XIX foram reencontrados pelos ingleses, passaram a símbolo universal do jardim do Éden, versão oriental do pecado original de Adão e Eva, deleite dos ocidentais inconformados com a castidade purificadora judaico-cristã.      


O Swami explica: para o tantra não há pecado. Não há certo nem errado, há a aceitação universal. Os templos de Khajuraho foram há mil anos a primeira expressão esculpida desta tradição. As suas figuras, mulheres, homens, bichos e deuses, entrelaçados, sorrindo, elevando-se em pirâmide ao céu, são um hino à eterna criação. Nada se perde, tudo se transforma. Hoje são um símbolo do tantra. 



– Swami, o Kama Sutra também é tantra?


É um grave erro histórico confundi-los. O Kama Sutra é um manual prático de posições sexuais. Como existem outros, noutras culturas, até mais antigos como na China. O tantra é o nosso corpo todo voltado para o amor. O sexo é yantra, o erotismo é mantra, o amor é tantra. 


– Swami, qual é a relação entre o yoga e o tantra?


São duas tradições hinduístas, que se podem complementar num ser humano, mas são diferentes. O yoga é disciplina, é respiração programada, é meditação calendarizada, é o corpo em exercício. O tantra é o corpo solto, livre, espontâneo, é o corpo em prazer. É entrar no rio e pegar na folha que a água leva, acarinhá-la, não haverá outra folha igual, outra água igual, outro prazer igual. Para o tantra não interessa nem o passado nem o futuro, interessa o presente, todos os presentes, porque todos são únicos, nenhum se repete. É ousar fazer o que nos apetece, agora, com os outros, com amor. 



– Qual é a relação do tantra com a religião?


Os hinduístas não são proselitistas, não querem converter ninguém. E o tantra não é uma religião, é um olhar para a vida que todos nós podemos ter. Por isso, quando passo num templo budista rezo a deus, quando passo numa igreja cristã rezo a deus, quando passo numa mesquita muçulmana rezo a deus. O tantra é a síntese da diferença, é a unidade da dualidade, é evitar os extremos, é procurar o caminho do meio. 


Krishna, Patanjali, Buda… o último grande mestre foi Gorakh. Swami Ganga olha o vazio e deixa-nos suspensos…  O seu silêncio é o espaço da nossa liberdade. Encantado, como nasci cristão, incluo Jesus. E, ao abraçar o meu amigo muçulmano, incluo Maomé.


***


A menina volta a perguntar ao velho sábio: – Swami, e a massagem tântrica?


Aí temos de voar para ocidente, mesmo para lá do Atlântico, para o Novo Mundo. Olhou para trás com nostalgia, cruzou o seu olhar com o olhar de Osho no quadro da parede, e explicou. Na Índia o tantra morreu. Morremos a santificar a castidade. Talvez venhamos a reaprender a integralidade do amor com os cristãos ocidentais. Que, sofrendo os acidentes normais de quem percorre um caminho novo, estão a fazer a viagem em sentido contrário. A nossa semente hoje germina melhor em Nova Yorque ou em São Paulo do que por aqui.

 

São Paulo, agosto de 2023


São Paulo, Vila Madalena. Num pequeno apartamento, uma jovem massagista tântrica atende os seus clientes. Nunca foi à Índia. A viagem é cara. Tentou desta vez acompanhar a sua amiga mais velha, mas ainda não conseguiu. Talvez para o ano. Já foi a Lisboa, em Portugal é mais fácil, a mesma língua. Atendeu na Avenida da Liberdade. Um spa de luxo, onde a sua massagem tântrica se integra numa linha de massagens terapêuticas, de relaxamento, para casais, aulas de yoga, de dança, consultas de cura emocional da solidão, quando alguém nos morre ou simplesmente nos deixa. Problema: as outras massagens são silenciosas, na massagem tântrica os sons explodem e ouvem-se nas outras salas. Por isso as massagens dela em Lisboa têm de ser mais contidas.


Ao contrário, em Vila Madalena, num apartamento que é só dela, a sala é um altar de ritual sem tempo. Sonha em comprar uma marquesa para pôr ao centro. Hoje cedeu o apartamento à amiga que chegou da Índia. A amiga está noutro patamar de sabedoria. Já é uma sábia do tantra, uma swami. Vai à Índia todos os anos, com o marido, que é professor de yoga. O destino é o ashram do seu baba, em Rishikesh. Prem Baba, que quer dizer “guru do amor”, é conhecido nos media sociais como o “guru das celebridades”, tal é a constelação de famosos que o seguem. É um psicólogo paulista, de família cristã, convertido ao hinduísmo e ao tantra. Converteu-se em Rishikesh, junto aos Himalaias, a capital dos ashrams, destino invariável dos ocidentais que hoje procuram na Índia a origem do yoga. E que lá descobrem que o yoga não é só uma prática física, é um percurso de autoconhecimento, de compreensão dos outros, de fusão amorosa. E que assim chegam ao tantra.


Hoje ela é uma jovem swami. Tem mais jovens seguidoras que a admiram. E a recomendam aos clientes, como uma discípula recomenda a sua mestra. Intercedem junto dela para que ela os atenda. Em sessão especial. Mora com o marido, fora de bulício de São Paulo, numa casa com rio e árvores à volta. Este ano casaram-se pela quarta vez no caudal do Ganges, junto a Rishikesh, onde as águas ainda são transparentes. Mas não esquecem a velha Varanasi, a cidade dos mortos, a jusante, onde o rio turvo recebe as cinzas dos corpos queimados entregues aos deuses. Onde ele frequentou o seu primeiro ashram. Onde ela compra fragâncias e óleos de massagem nos alquimistas da rua da Bhadaini Ghat. E tudo partilham com a sua tribo de clientes, de seguidores, de amigos, em seminários na natureza, em viagens organizadas à Índia, em atendimentos especiais, em Vila Madalena, em Campo Belo, nos bairros da moda alternativa de São Paulo.  


Uma luz coada, um perfume de incenso, um tapete, duas almofadas. Ao fundo um big bang de estrelas pintado na parede. Sentam-se frente a frente, em posição de lótus. Ele está nu, ela está vestida com um prático fato negro colado ao corpo. Aos poucos deixam as memórias, fecham os olhos e começam a respirar. Inspiram, expiram, suavemente. Ela levanta-se e vai sentar-se atrás dele. Enlaça-o contra o peito e respiram ao mesmo ritmo, como se fossem um só. E assim ficam, longos momentos, fundindo energias. Ela faz-lhe sinal com o corpo para que ele se deixe escorrer sobre ela. Está seguro, pode deitar-se. Com carinho amortece-lhe a chegada ao chão. Afasta-lhe as pernas à distância de shavassana, a postura do morto, e deixa-o a respirar.


A diferença entre a morte, o sono, e o sonho fica fluida. Como ao acordar em outra vida, ele começa a sentir um arrepio no peito. Que se abre pelos braços, que se estende pelo corpo. Que lhe desce pelas pernas, pelos pés, pelo chão, como se fizesse parte da terra. É um arrepio suave, às vezes um véu de medusa flutuando na água, outras mais frenético, saltitante, as asas de uma borboleta. A música de um mantra fundido num samba ouve-se ao fundo. Quando sente que são os dedos dela a tocarem-lhe a pele, o arrepio transforma-se numa carícia. As mãos dela passam pelas dele, tateiam-se por um momento, e despedem-se. A mão dele fica, a mão dela parte, na sua viagem pelo corpo dele. E ele adormece acordado, neste enlevo de solidão.


Numa ordem sussurrada ao ouvido, ela diz-lhe para passar de uttara para udara shavassana, também é bom morrer voltado para a terra. Ele enrola-se num sono aconchegado, com a barriga almofadada ao chão. As mãos dela revolvem-lhe o cabelo, passeiam-lhe as costas. Uma desce ao fundo do corpo e toca-o com firmeza no primeiro chakra, para que a chama da kundalini se acenda e lhe suba pela coluna vertebral. A outra mão apazigua, desce longamente, num percurso esperado, e chega, num formigar, suave, à planta de um pé.


A uma voz mais firme ele volta-se para cima. Ela senta-se e entrelaça as pernas nas dele. As mãos assumem a simetria, e seguram-lhe as plantas dos pés para o elevarem ao céu. Reza, é uma paragem mística, de inspiração. Unge as mãos de óleo. A massagem agora fica vigorosa. As mãos sobem pelas pernas, pelo corpo, uma para firme no chakra do ventre, a outra sobe para aconchegar o chakra do coração. E descem pelos braços, para reencontrar as mãos dele, que agora se entrelaçam e se apertam, sem preliminares. 


Ele desperta. Primeiro a passo, como num passeio. Depois acelera, com a energia da kundalini a tremer-lhe o corpo. Inspira, expira, com som, pode gritar… – Estamos em São Paulo, em Vila Madalena, ninguém estranha. A certa altura o ritmo já não é dele, nem dela. Por isso ela refreia, ele descansa, e volta. Num momento ela vê que, num estertor maior, ele para…


Quanto tempo? Aos poucos ele volta a sentir um novo frenesim vindo das entranhas, sem destino, não sabe onde vai chegar. Já sabe que a morte não é morte, é um renascer. E já não quer saber para onde vai. Só quer sentir. As mãos dela multiplicam-se, tornam-se muitas, como Cali, a deusa suprema do tantra. Tanto lhe mantêm a chama ardente no ventre como lhe acariciam com ternura o peito. Para ter a certeza de que está vivo, ele ousa abrir os olhos, e cruza o olhar da deusa, que se ri divertida. É uma mistura de céu e de terra, de inferno e de paraíso, de fusão dos contrários, de tantra.


O homem morreu. Jaz despojado em cima do tapete. A música vela-lhe a viagem. E ela também. Desenlaçara-se do corpo dele como uma nuvem se afasta de uma serra, e sobe, sobrevoa-o. Vela por ele, por todos os homens, que por trás da rudeza da sua condição humana descobrem a paz nos braços de uma mulher. Que estrela é ela? Sírius, a mais brilhante do céu. Ou Vénus, a estrela d’Alva e de Vésper, que nos anuncia que o dia vai nascer, ou que chegou ao fim.


***


O pano cai. E a menina pensa – Como é fácil chegar ao Paraíso! O Deus que criou Eva e Adão estava certo. Que deus menor inventou o pecado original?



Khajuraho e São Paulo, março e agosto de 2023

Paulo de Lencastre



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