O Bon Vivant
- Paulo de Lencastre
- Mar 17, 2024
- 4 min read
Updated: Nov 25, 2024
Jorge tinha menos seis anos que Emília, a sua irmã mais velha. O irmão que veio a seguir, também Jorge, morreu antes dele nascer. Para distinguir, Raul Jorge era o menino morto, Manuel Jorge foi o reencarnado.
Fotografia em São Jorge, de outubro de 1949, o Tio Jorge com 19 anos ao lado da irmã Emília. Ao fundo a sua tia paterna Alda com o marido Armando e a filha Maria Luísa.
– Que ideia os Meninos têm do Tio Jorge?
– Era o irmão da Avó Emília… um “bon vivant”.
O Tio Jorge foi um bon vivant toda a vida. Pode dizer-se que o era no sentido mais estrito e imediato do termo, a vida bem vivida a cada momento, sem olhar para o futuro.
– Conte-nos uma história do Tio Jorge…
O Tio Jorge nasceu em 1930, neste dia 2 de junho, ou seja, há 89 anos. Cresceu mimado entre as casas da família. Do lado da mãe Olímpia vinha o Fojo palaciano dos ingleses em Gaia; e a Praça, da aristocracia ancestral do vinho do Douro, em Provesende. Do lado do pai Mateus vinha São Jorge, em Favaios, quinta mais rústica, nos moscatéis e na família. Fez o liceu no Porto e foi para a universidade, primeiro em Coimbra, depois em Lisboa, onde quase se formou em Engenharia.
Um dos seus maiores amigos de boémia e percurso académico era o Tio Miguel, que era um ano mais velho, e um boémio mais calejado. As famílias eram amigas. Ficaram ligadas desde 1954, quando a irmã Emília de Jorge se casou com o irmão José Paulo de Miguel. Miguel e Jorge eram à época os dois “enfants terribles” das respetivas famílias, os Lencastres de Casa da Torre em Paços de Ferreira, e os Saavedras da Casa do Fojo em Gaia. Miguel, o mais novo de nove irmãos, tinha menos nove anos que o irmão Zé Paulo. Jorge tinha menos seis anos que Emília, a sua irmã mais velha. O irmão que veio a seguir, também Jorge, morreu antes dele nascer. Para distinguir, Raul Jorge era o menino morto, Manuel Jorge foi o reencarnado.
Aí por 1960, Miguel decide ir para padre. Passara dos trinta anos, estava na Suíça, num prolongamento internacional de boémia e estudo. Sentia-se sem rumo de vida. Mandou ao irmão Zé Paulo, seu tutor por delegação dos pais cansados com filho tão difícil, uma longa carta dando a notícia! – Agora é que o Miguel está louco!!! – lembro-me do meu pai comentar para a minha mãe enquanto lia a carta.
Só que a família Lencastre, muito católica e devota, ficou feliz! Considerou mesmo que era um milagre do céu, intermediado pela santa Tia Sílvia, irmã da mãe de Miguel, que morrera dez anos antes com fama de santidade e fundadas esperanças de chegar aos altares.
Miguel, feliz e realizado, decide lançar o desafio da sua “conversão” ao amigo Jorge. Fazem um pacto quase de sangue, cortam uma gravata. Miguel leva a sua metade para o Chile onde vai iniciar o noviciado, enquanto Jorge vai convencer os pais que este é o seu novo caminho. Por essa época, tinha eu uns cinco anos, lembro-me à noite de estar ajoelhado com o Tio Jorge no coro da capela do Fojo a rezar “Ó minha Senhora e minha Mãe, eu me ofereço todo a vós…” oração da congregação mariana alemã do Tio Miguel que toda a família passou a saber de cor.
A família Saavedra não tinha de todo a mesma fé inabalável da família Lencastre. O pai Mateus consta que chorou toda a noite no seu ermo de serrania em São Jorge quando recebeu a notícia. O único filho homem, que ele sonhava ter um dia como continuador das lavouras difíceis do moscatel, queria ir para padre. A mãe Olímpia, mais flexível, mais distraída por uma vida mais cosmopolita de cidade, talvez intuindo alguma frivolidade impulsiva na decisão do filho, não se preocupou tanto.
Jorge partiu para o Chile. Quando chegou a Santiago o amigo Miguel, por dúvidas, entregou Jorge ao cuidado da família de um amigo chileno completamente convertido e mais avançado no noviciado. Ao fim de alguns dias Miguel recebe um telefonema do amigo – Miguel tens a certeza de que o Jorge quer ir mesmo para padre? – É que desde que chegou só sai com a minha irmã e eu acho que estão apaixonados!!!
Constanza Tomassini foi o maior amor que conheci do Tio Jorge. Levou-o pelo menos umas três vezes a viajar para o Chile. Ao ponto do meu pai Zé Paulo, homem de vida muito clara, dizer ao cunhado – Manuel Jorge, acho que devia assumir que vai casar com a Constanza, porque senão estas viagens ao Chile não fazem sentido.
O Tio Jorge estava no Chile com a Constanza, numa festa em Santiago que iria durar até mais tarde. Se ficasse ia perder o avião dessa noite em que regressaria a Portugal. Ligou à agência de viagens para adiar o voo para o dia seguinte. No dia seguinte, quando chegou ao aeroporto, o empregado do balcão olhou-o como um miraculado – Senhor, o seu avião de ontem caiu nos Andes. Lembro-me de nesse dia ir com o meu pai ao aeroporto de Lisboa ver a lista dos mortos e não encontrar o nome do Tio Jorge.
O regresso do Chile foi a última viagem de avião do Tio Jorge. Quinze anos mais tarde a Constanza, já casada com um primo, escreve ao Tio Jorge dizendo-lhe que vem à Europa, a Itália, visitar a sua família de origem. Eu já era adulto e fazia muitas vezes de confidente do Tio Jorge. Senti que, apesar do tempo passado e de outras namoradas que entretanto teve, não lhe era fácil encontrar a Constanza apenas como uma amiga. Não foi só por causa do medo do avião que não foi visitá-la a Roma.
Gaia, junho de 2019
Paulo de Lencastre
Que história incrível ❤️